Relato de experiência: Análise da maturidade da cultura de segurança de empresas de grande porte utilizando o método Hearts & Minds

Denis de Freitas

Psicólogo (UFPR), Mestre em Psicologia (UFPR), Consultor na área da segurança comportamental

Contato: denisdefreitass@gmail.com

 

Maria Cristina Vieira de Cristo e Silva

Psicóloga (UFRN), Mestre em Psicologia (UFMG), Especialização em Neuropsicologia (FUMEC) e Consultora na área da segurança comportamental

Contato: mcristinadecristo@gmail.com

 

Resumo

O método Hearts & Minds tem despontado como um modelo confiável para a realização de diagnósticos em organizações do mundo todo, com uso mais recente na realidade brasileira. Este artigo visa analisar os níveis de maturidade da cultura de segurança de empresas de grande porte, alocadas no Brasil, caracterizando segundo a Classificação Nacional de Atividades Econômicas e as estatísticas de acidente das atividades, utilizando o método Hearts & Minds. Esse método distingui a cultura de segurança em cinco níveis de maturidade: Patológico, Reativo, Calculador, Proativo e Generativo. O processo de diagnóstico de cultura de segurança foi realizado em cinco etapas: planejamento, coleta de dados, análise das informações, elaboração e apresentação do relatório. Foram diagnosticadas 16 empresas e suas unidades produtivas, entre 2017 e 2019, totalizando 29 relatórios. A análise dos resultados indica uma grande preocupação das empresas em evitar acidentes, muitas delas procurando conhecer sua realidade para desenvolver ações mais assertivas. Contudo, ainda há significativa dificuldade dessas empresas em compreender os impactos de tomadas de decisões de pessoas que ocupam cargos de gestão, bem como de vivenciar a segurança do trabalho como um processo de desenvolvimento da confiabilidade das operações.

Palavras-chaves: Cultura de Segurança, Diagnóstico de Cultura, Método Hearts & Minds

 

 

Abstract

The Hearts & Minds method has emerged as a reliable model for diagnostics in organizations worldwide, more recently used in Brazilian reality. This article aims to analyze the safety culture maturity levels of big companies, located in Brazil, characterizing according to the National Classification of Economic Activities and the accident statistics of the activities, using the Hearts & Minds method. This method distinguishes safety culture at five maturity levels: Pathological, Reactive, Calculative, Proactive and Generative. The safety culture diagnostic process was carried out in five steps: planning, data collection, information analysis, preparation and presentation of the report. Sixteen companies and their production units were diagnosed between 2017 and 2019, totaling 29 reports. The analysis of the results indicates a great concern of companies to avoid accidents, many of them seeking to know their reality to develop more assertive actions. However, there is still significant difficulty for these companies to understand the impacts of decision making by people in management positions, as well as to experience work safety as a process of developing the reliability of operations.

Key Words: Safety Culture, Cultural Survey, Hearts & Minds Method.

 

 

Introdução

 

No Brasil, segundo dados do Observatório Digital de Segurança e Saúde do Trabalho, é possível contabilizar uma morte por acidente em serviço a cada 3 horas e 40 minutos. De acordo com dados da Previdência Social (2017)1, entre 2015 e 2017 foi registrado no Brasil aproximadamente 1,8 milhão de afastamentos por acidente de trabalho.

A dimensão dessas estatísticas tem despertado o interesse por uma cultura de prevenção de acidentes. Isso tem incentivado empresários, órgãos governamentais e pesquisadores a se aprofundar nos aspectos organizacionais. Dessa forma, aplicar o diagnóstico de cultura de segurança se apresenta como uma alternativa para conhecer a realidade de cada empresa e posterior desenvolvimento de ações assertivas (Gonçalves-Filho, Andrade e Marinho, 2011 2; Vassem, Fortunato, Bastos e Balassiano, 20173).

Especialistas em segurança associam o efeito do desenvolvimento de uma cultura de segurança com a melhoria do desempenho de segurança das organizações, impactando na redução de acidentes e possíveis desastres (Cooper, 2000)4, assim como alguns autores sinalizam que as organizações com boa cultura de segurança têm taxas de acidentes menores do que aquelas com cultura de segurança fraca (Horbury e Bottomley, 1998 apud Stemn, Bofinger, Cliff e Hassal, 20195). Hudson (2007)6 ao abordar sobre indicadores de reporte de acidente e da cultura de segurança, afirma que “A problemática reside em que, pode ser que uma cultura de registros não faça uma cultura de segurança, mas sim que uma cultura de segurança torna possível uma cultura de registros.”[1] (p.718). Mas, como diagnosticar a cultura de segurança?

Para diagnosticar a cultura de segurança de uma organização muitos instrumentos tem sido desenvolvidos dentro e fora do Brasil (Gonçalves-Filho, Andrade e Marinho, 20107; 20112; 20138; Vassem, Fortunato, Bastos e Balassiano, 20173; Stemn, Bofinger, Cliff e Hassal, 20195). O material que foi utilizado como referência para a realização desse trabalho é o modelo chamado Escada da Cultura de Segurança9, que leva a marca do Hearts & Minds, um programa de segurança que foi desenvolvido pela Shell E&P em parceria com as universidades Leiden na Holanda, Manchester, Glasgow e Aberdeen, no Reino Unido.

O programa tem sido aplicado com sucesso em empresas no mundo todo, mas ainda é recente o uso do modelo na realidade das indústrias brasileiras (Gonçalves Filho, Andrade e Marinho, 20107).

Nesse modelo, a cultura de segurança é entendida como as crenças e as atitudes da organização voltadas para a segurança. Tem um papel importante na organização e influencia o quão seguro é o comportamento das pessoas. De maneira mais objetiva, a cultura de segurança influencia o ambiente no qual as pessoas trabalham e no qual as barreiras contra o acidente estão agindo (Hudson, 20076). Com características diferentes, a cultura de segurança pode ser compreendida em cinco níveis de maturidade, quais sejam:

 

  • Patológico: Segurança não é um elemento importante, as pessoas são guiadas pela conformidade às normas e/ou para não sofrerem punições.
  • Reativo: Ações em segurança são levadas a sério quando as coisas dão errado.
  • Calculador: Ênfase em sistemas e estatísticas. Contudo, a eficácia dos dados coletados nem sempre é verificada. Tendência a valorizar resultados quantitativos.
  • Proativo: Gestão analisa o que aconteceu no passado para impedir que algo dê errado no futuro. A força de trabalho envolve-se na prática e a função de segurança é compartilhada. A atuação de especialistas em segurança passa a ser de orientação em vez de execução.
  • Generativo: A organização define padrões elevados e busca superá-los. As falhas são entendidas para melhorar os processos e não para culpar pessoas. Há uma comunicação de mão dupla com a força de trabalho.

 

O desenvolvimento da cultura de segurança como degraus auxilia na compreensão de que existe um caminho a ser percorrido entre culturas menos avançadas para outras mais avançadas, e mais ainda, que existem momentos de transição e que ao reconhecer o nível atual de maturidade em segurança a organização pode olhar as características do nível seguinte e traçar metas para alcançá-las (Hudson, 20076). A Figura 1 demonstra a Escada da Cultura de Segurança.

 

Figura 1 – Escada da Cultura de Segurança

Fonte: Hudson, 20076. Tradução dos autores.

 

Para identificar qual o nível de maturidade que a organização se encontra, o material do Hearts & Minds apresenta uma matriz com dezoito itens que devem ser analisados e detalhados dentro de cada organização (veja o Quadro 1).

 

Quadro 1 – itens de avaliação da Cultura de Segurança

 

A) Comunicação em segurança J) Técnicas de gerenciamento de segurança em área
B) Nível de compromisso dos trabalhadores em segurança K) Propósito dos procedimentos
C) Recompensas de um bom desempenho em segurança L) Análise e relatório de ocorrências
D) Quem causa perdas/danos/acidentes aos olhos da gestão M) Gestão comportamental
E) Equilíbrio entre lucratividade e segurança N) Comportamentos pós ocorrências
F) Gestão de terceiros O) Checagem de segurança
G) Interesse em desenvolvimento em segurança P) Clima das reuniões em segurança
H) Tamanho/status da área de segurança Q) Auditorias e revisões
I) Planejamento de trabalho R) Benchmarking, tendências e estatísticas

Fonte: Caderno Entendendo sua Cultura10, da marca Hearts & Minds. Tradução dos autores.

 

Alguns estudos também têm demonstrado que a cultura de segurança não se desenvolve com a mesma velocidade em toda a empresa e nem em todas as dimensões. Assim, uma mesma empresa pode ter unidades produtivas com culturas de segurança diferentes e até mesmo setores com subculturas de segurança, embora essas não sejam tão comuns o diagnóstico (Gonçalves Filho, Andrade e Marinho, 20107; Hudson e Willekes, 20009; Stemn, Bofinger, Cliff e Hassal, 20195).

Neste artigo são analisados, a partir de análise de documentos (i.e., de pareceres técnicos de atividades de consultoria em que os autores participaram) os níveis de maturidade da cultura de segurança de empresas de grande porte, caracterizando segundo a Classificação Nacional de Atividades Econômicas e as estatísticas de acidente das atividades, utilizando o método Hearts & Minds.

Trata-se de um processo de pesquisa que busca compreender os aspectos comuns relacionados ao contexto atual do trabalho e como ele afeta o comportamento e as atitudes dos trabalhadores no âmbito da Segurança do trabalho.

Este relato de experiência é decorrente de uma ação pioneira na aplicação desse método no Brasil por meio de consultoria empresarial, após ter passado por uma formação oficial proposta pelo Instituto Energy, em Londres, em 2012. A consultoria atua no mercado brasileiro há mais de vinte anos com foco em desenvolver uma cultura preventiva nas organizações. O corpo de funcionários é multidisciplinar, formado por psicólogos, engenheiros e administradores, com formação técnica específica para atuar nos diversos temas que envolvem o campo, desde diagnósticos de clima e cultura de segurança, a treinamentos e intervenções pós acidentes.

 

Método

 

O processo de diagnóstico de cultura de segurança dispunha de um fluxo de cinco etapas a serem seguidas pela consultoria: planejamento das atividades, coleta de dados, análise das informações, elaboração e apresentação do relatório.

A etapa de planejamento das atividades consistiu no levantamento de características da empresa cliente, como: histórico, demanda, porte, número de funcionários, bem como a definição de cronograma para coleta dos dados e datas para as etapas seguintes do fluxo.

Para a realização da coleta de dados, em cada diagnóstico, percorreu-se as seguintes etapas:

 

  • Encontro Hearts & Minds: reunião com alta liderança da organização (coordenadores, gerentes, diretores e presidentes) para preenchimento da matriz com os dezoito itens (Quadro 1), o que possibilitou que essas lideranças discutissem e indicassem a própria percepção sobre o nível de maturidade da empresa. Atividade importante para conhecer o nível de autocrítica das lideranças (Hudson e Willekes, 20009).
  • Grupos focais: reuniões com profissionais, divididos em grupos de mesma hierarquia, com no máximo 15 pessoas, em que o profissional da consultoria utilizando-se da matriz com as 18 dimensões como norteador, questionou os profissionais da empresa para que eles compartilhassem suas percepções e exemplos que representassem o dia a dia da segurança do trabalho na organização. Os encontros possibilitaram a obtenção de informações sobre a percepção de diferentes grupos de trabalhadores.
  • Entrevistas: Entrevistas individuais com profissionais considerados fundamentais para a compreensão dos processos de segurança da empresa (ex., diretor, profissionais de saúde e gerente).
  • Observação e abordagem comportamental: Momento da coleta de dados destinado a visitas em área operacional, com o intuito de aprofundar o entendimento sobre o dia a dia da organização, do uso das ferramentas de segurança, bem como das informações levantadas nos outros métodos. Fundamenta-se em uma ferramenta amplamente utilizada no mercado, o Behavior Based Safety (Geller, 2001¹¹).
  • Análise documental: também foram analisados documentos de segurança, como: política de segurança da empresa; indicadores de segurança; relatórios de investigações de acidente; modelos de permissão de trabalho, de análise preliminar de risco, de inspeção planejada, de diálogos de segurança; materiais utilizados em treinamentos; campanhas de Segurança; materiais de informação para visitantes; manuais de procedimentos de segurança; e organograma da empresa.

 

Após a coleta dos dados, as informações geradas foram analisadas e, posteriormente, os relatórios foram apresentados. Coube à consultoria correlacionar as evidências, visando a classificação do nível de maturidade de cada item (18 itens), seguindo orientações do modelo Hearts & Minds (Hudson, 20076) e conforme a expertise. O resultado dessa análise gerou o parecer da consultoria, que apontou em cada diagnóstico o estágio de maturidade. A consultoria apresentou a cada empresa diagnosticada uma proposta de plano de transformação cultural, que poderia ou não ser continuado com a consultoria.

Os critérios para a inclusão das empresas no presente relato de experiência foram: (1) ser uma empresa de grande porte (mais de 500 empregados, segundo a classificação do IBGE), (2) ter sido realizada entre 2017 e 2019, e (3) contar no parecer da consultoria o número total de funcionários e da amostra no momento desta pesquisa.

 

Amostra

 

Foram analisados os documentos técnicos de consultoria referentes aos diagnósticos realizados em 16 empresas e suas unidades produtivas, totalizando 29 relatórios de diagnóstico de cultura de segurança em empresas de grande porte brasileiras.

Por se tratar de um serviço contratado à consultoria, muitas empresas optam por diagnosticar apenas alguma(s) de sua(s) unidade(s) produtivas. Essas unidades produtivas podem estar localizadas em diferentes partes do Brasil. Dessa forma, uma única empresa pode ter mais de um relatório de diagnóstico, ou mesmo um único diagnóstico realizado que não é, necessariamente, da empresa como um todo, podendo ser apenas de uma de suas unidades.

Dentre os diagnósticos realizados, há unidades na região do Paraná (N=1), Santa Catarina (N=1) e Rio Grande do Sul (N=1), Maranhão (N=1), Pará (N=2), Goiás (N=2), Bahia (N=2), Espírito Santo (N=2), Rio de Janeiro (N=3), Minas Gerais (N=4), São Paulo (N=16).

Para facilitar a compreensão das categorias de empresas presentes na pesquisa, bem como garantir o anonimato delas, optou-se por utilizar a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), das quais podemos destacar quatro delas: Transporte, armazenagem e correio (N=1), Indústrias extrativas (N=5), Agricultura, Pecuária, Produção florestal, Pesca e Aquicultura (APPFPA) (N=7) e Indústrias de transformação (N=16).

O número total de funcionários informados pelas unidades no momento de cada diagnóstico soma-se 38.934 pessoas. Dentre estes, o número total de pessoas ouvidas nas pesquisas soma-se 5.287 pessoas.

Sobre o período dos relatórios de diagnósticos do estudo, 10 foram realizados em 2010, 11 foram realizados em 2018 e 8 foram realizados em 2019 (até o mês de abril).

 

Resultados e discussão

 

Os resultados serão apresentados analisando as características gerais dos níveis de maturidade encontrados e na sequência a descrição das maturidades caracterizando segundo o CNAE e as estatísticas de acidente de cada atividade.

Os níveis de maturidade mais encontrados foram Reativo e Calculador, identificados em 13 empresas/unidade produtiva cada, seguidos dos níveis Patológico e Generativo, com 2 e 1 resultados, respectivamente.

Nas empresas Patológicas pesquisadas constatou-se a ausência de sistemas de gestão em segurança com foco em prevenção, ao passo que contabilizavam apenas os acidentes ocorridos, com baixo ferramental de segurança e com poucas campanhas visando a prevenção de acidentes. Foram frequentes nesses diagnósticos os relatos de funcionários que sinalizavam a existência de subnotificações. Estas ocorriam por medo da exposição gerada aos acidentados, que comumente eram vistos como culpados pelos acidentes e, consequentemente, pelos impactos negativos em metas de bonificação por ausência de acidentes.

A prática de associar prêmios financeiros à ausência de acidentes, embora não permitido por lei, é praticada em muitas organizações, na forma de remuneração indireta, sem estar vinculado ao salário na carteira de trabalho. É uma prática que tende a diminuir à medida que a organização alcança maiores níveis de maturidade em sua cultura de segurança. Nas empresas pesquisadas que apresentaram as maturidades reativo e calculador também houve relatos de subnotificações, quando existia a prática do prêmio financeiro. No estágio generativo essa prática não foi identificada.

De maneira geral, alcançar a meta do “zero acidente” é o grande foco em segurança das empresas pesquisadas. Foco este que, apesar do discurso, não significa que a segurança seja uma prioridade. É importante dizer que a não ocorrência de acidentes deve sempre ser algo positivo, mas, a literatura sinaliza que a diminuição no número de acidentes passa a ser a consequência de uma empresa madura, e não o objetivo principal de todas as suas ações.

Quando a empresa foca somente no “zero acidente”, sem aprimorar o sistema de gestão e o gerenciamento dos riscos, os funcionários sentem-se pressionados em não prejudicar o principal indicador de segurança, que é a taxa de frequência de acidentes. Contudo, nota-se que desvios de segurança podem ser tolerados no dia a dia, enquanto esses desvios gerarem mais produção e não resultarem em acidente. Esse perfil de empresa foi diagnosticado principalmente com nível de maturidade Reativo.

Na prática, quando a segurança é vivenciada como um processo burocrático, que conflita diretamente com a produção e que a preocupação é com o acidente, não necessariamente com a prevenção, percebe-se um nível de maturidade Calculador. A empresa não tem clareza e nem consegue desenvolver indicadores para mensurar como a segurança poderia contribuir para a confiabilidade das operações.

Até o nível de maturidade Calculador, verificou-se que as ações de segurança são executadas por via de cobrança externa, seja por exigências legais ou porque a equipe de segurança do trabalho se comporta, primordialmente, como uma equipe de fiscalização.  De forma positiva, os setores nos quais as equipes de segurança do trabalho estão inseridas são percebidas como necessárias dentro da organização.

Grande parte das empresas pesquisadas promovem a educação para a segurança atuando somente no clima de segurança, através de campanhas com banners espalhados pela empresa ou com palestras motivacionais, uma vez que ações no clima impactam de maneira momentânea, entendendo o clima como um retrato das percepções compartilhadas pelas pessoas no ambiente de trabalho das iniciativas de segurança do local (Zhang, Wiegmann, e Thaden, 2002¹²). Pouco se veem ações educativas voltadas para a conscientização das pessoas, com tomadas de decisões horizontais e baseadas em análises sistêmicas de fatores organizacionais, as quais impactariam na cultura, ou seja, nas atitudes e nos comportamentos relacionados com o aumento ou a diminuição da exposição ao risco na organização (Guldenmund, 2000¹³).

Quando o assunto é o acidente, as investigações e as análises de ocorrências com frequência avançam apenas até a identificação de erro humano, entendo este erro como falha da percepção de risco do funcionário, falta de atenção na atividade, ou apenas autoconfiança, características descritas por Almeida (2006)14 como uma abordagem tradicional, que tende a punir as vítimas e não alterar os sistemas em que se ocorrem os acidentes.

É percebida a dificuldade que as pessoas que ocupam os cargos de gestão têm em entender o peso de suas decisões e de seu estilo de liderança como fator contribuinte das ocorrências, bem como no desenho de planos de ação que atuem na causa raiz, e efetivamente possam evitar reincidência. Nesse cenário, as intervenções da consultoria costumam visar uma análise mais profunda de elementos organizacionais, compreendendo como as práticas cotidianas são naturalizadas e podem legitimar comportamentos de risco.

Na contramão desse cenário, a empresa com nível de maturidade Generativa vivenciou um processo de mudança de modelo de gestão, passando a considerar aspectos organizacionais como elementos primordiais para o aumento do nível de maturidade, como por exemplo: capacitação dos funcionários, ênfase no reconhecimento de comportamentos seguros, ações de benchmarking, análise das ocorrências com identificação das causas básicas, ênfase no ciclo de Planejamento, Desenvolvimento, Check e Análise, conhecido como PDCA das ferramentas, comunicação eficaz entre líder e liderado, etc. Cabe salientar, que no nível Generativo, a organização não é imune aos acidentes, exigindo estratégias para manutenção da maturidade.

Contextualizando os níveis de maturidade encontrados na gama de atividades econômicas da realidade brasileira têm-se a distribuição apresentada no Quadro 2. Das 21 atividades econômicas descritas no CNAE, apenas 4 aparecem na pesquisa, demonstrando a grande oportunidade que existe no mercado para a realização de diagnósticos em diferentes segmentos e/ou o quanto os segmentos pesquisados tem sofrido maiores influencias da sociedade, dos governos e acionistas para investirem em cultura de segurança.

Conforme mostra o Quadro 2, o estágio de maturidade Patológico foi diagnosticado somente no setor de APPFPA e o estágio Generativo, apenas na Indústria de Transformação. Os estágios Reativo e Calculador aparecem em todos os setores pesquisados (com exceção do setor de Transporte, armazenagem e correio com apenas um diagnóstico realizado).

Olhando mais detalhadamente as atividades econômicas e correlacionando com os dados da Previdência Social (2017¹) entre os anos de 2015 e 2017 teremos a distribuição conforme o Quadro 3, no qual é possível fazer algumas análises.

 

Quadro 2 – níveis de maturidade de cultura de segurança de acordo com CNAE

 

CNAE Maturidade Quantidade

Agricultura, Pecuária, Produção florestal, Pesca e Aquicultura (APPFPA)

 

Patológico 2  
Reativo 3  
Calculador 2  
Indústrias de transformação Reativo 7  
Calculador 8  
Generativo 1  
Indústrias extrativas Reativo 2  
Calculador 3  
Transporte, armazenagem e correio Reativo 1  

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

Quadro 3 – Quantidade de acidentes de acordo com o CNAE

 

CNAE Total de acidentes por categoria 2015/16/17 % do Total de acidentes 2015/16/17 Total de Acidentes – Geral 2015/16/17
Agricultura, Pecuária, Produção florestal, Pesca e Aquicultura (APPFPA) 50.683 3% 1.757.410
Indústrias de transformação 463.230 26%
Indústrias extrativas 13.248 0,75%
Transporte, armazenagem e correio 140.872 8%

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

O setor econômico da APPFPA caracteriza-se pela sazonalidade de suas operações, o que, não raro, leva a contratação formal de funcionários apenas nos grandes períodos de safra, além de ser um setor que emprega muitos trabalhadores de baixa escolaridade. Há décadas as empresas do setor têm passado por um processo de modernização de lavouras, com a inclusão de máquinas agrícolas e a utilização de agrotóxicos, que tem aumentado o potencial de gravidade de acidentes das operações (Rodrigues & Silva, 198615).

Essas características, juntamente com os dados de acidentes apresentados pela Previdência Social, levantam questionamentos sobre o sub-registro dos acidentes do setor (Rodrigues & Silva, 198615). É o setor no qual há as duas empresas que foram classificadas como Patológicas, indicando a necessidade de maior olhar e investimento para a cultura de segurança.

A Indústria de transformação, que apresenta a maior porcentagem de acidentes de trabalho dentre os setores pesquisados (26%), também teve uma participação de 18% no número de empregos formais no Brasil, segundo dados do IPEA (2018)16, ficando atrás apenas do setor de serviços, com 44,5%. Esse setor tem a maior procura por diagnósticos, foram 16 no total, segundo a amostra pesquisada neste estudo, demonstrando grande interesse em conhecer o nível de maturidade da cultura de segurança.

O setor da Indústria extrativa, apesar de apresentar o menor percentual do número de acidentes (0,75%) dentro da amostra, é o que possui atividades com o maior grau de risco atribuído, o nível 4, em uma escala de 1 a 4. São empresas que têm buscado na mecanização das atividades uma alternativa para lidar com o grau de risco que apresentam, assim como o desenvolvimento de diagnósticos de cultura.

Por fim, o segmento de Transporte, armazenagem e correio, em segundo lugar na porcentagem de acidentes, com 8%, necessita promover maior abertura para conhecer e desenvolver a cultura de segurança. O único diagnóstico realizado no período pesquisado mostra uma empresa no nível reativo, no qual o acidente é o gatilho para a promoção de ações de prevenção que são pontuais, sem planejamento para a continuidade.

 

Considerações Finais

 

O avanço na maturidade da cultura de segurança passa pela mudança do modus operandi, ou seja, aumento da consciência de forma que a segurança seja praticada em todos os níveis hierárquicos, sem conflitos com produção, em que papéis e responsabilidades são bem definidos, executados e reconhecidos. Com isso, os sistemas de gestão precisam ser desenhados para contemplar segurança em todas as etapas, do desenho de um novo projeto ao planejamento diário da produção.

Essa forma de pensar e fazer segurança é o grande desafio para a realidade brasileira, uma vez que enfrentamos problemas sociais que vão desde a dificuldade de escolarização, hierarquia social fortemente marcada e dificuldades de acesso ao emprego. Essas características, se correlacionadas com o ambiente organizacional podem influenciar diretamente as relações de atribuição de culpa no acidente, a dificuldade em se opor a condições inseguras de trabalho e a terceirização das ações que envolvem a segurança do trabalho sempre a uma terceira pessoa e menos como protagonista (seja, operador, supervisor ou gerente).

A industrialização brasileira também apresenta os seus entraves. As empresas estão em diferentes estágios de modernização, enquanto umas seguem com modelos fordistas com a predominância de pessoas em cada etapa do processo produtivo, outras já despontam nos conceitos modernos da indústria 4.0, dificultando o estabelecimento de estratégias comuns de atuação e tornando o trabalho das consultorias empresariais mais customizado para cada empresa.

            A pesquisa descrita nesse relato de experiência, apesar do seu pioneirismo, apresenta limitações. Apresenta-se um número limitado de diagnósticos de cultura de segurança, reconhecendo que é uma parcela pequena quando comparado ao universo de empresas instaladas em nosso país. Sabe-se também da existência de outros instrumentos para medir cultura de segurança, o que dificulta a padronização e entendimento da maturidade de outras empresas. Outra limitação é o envolvimento de recursos financeiros. Por se tratar de serviço de consultoria, pode-se inferir que nem todas as empresas disponibilizam capital para investir nesse tipo de ação e que ficam dependentes, por exemplo, de pesquisa promovida por universidades ou por órgãos do governo para ter acesso a tais informações.

No entanto, é importante dar os primeiros passos na divulgação desses resultados, seja para conhecer o panorama atual da maturidade da cultura de segurança do trabalho no Brasil, seja para saber que as empresas, apesar dos problemas que apresentam, estão buscando consultorias especializadas para mapear e ter clareza a respeito do seu cenário organizacional.

Uma vez que o diagnóstico de cultura de segurança era contratado pelas empresas, todas demonstraram reais interesses em ter melhor entendimento sobre os itens que compõem sua cultura de segurança, assim como os envolvidos no diagnóstico, dos diretores aos níveis operacionais, tinham interesse em contribuir com informações pertinentes.  Essa percepção da consultoria é importante ser compartilhada, uma vez que o nível de profundidade do diagnóstico pode trazer à tona elementos delicados da cultura de uma organização.

No longo prazo, no que se referem aos estudos sobre a temática, é possível pensar na construção de um banco de dados que mantenha as informações sobre o nível de maturidade da cultura de segurança das organizações brasileiras, e que seja útil para nortear políticas públicas e caminhos de atuação, pensando em cada nível de maturidade específico.

Por fim, o método Hearts & Minds, demonstra simplicidade na aplicação do diagnóstico e precisão. Ao fornecer 18 itens que devem ser analisados, amplia a concepção de que uma cultura de segurança madura não é a ausência de acidentes e sim a combinação de fatores (pessoas, processos e sistemas), sendo desenvolvidos buscando o equilíbrio entre lucro, segurança e o cuidado com as pessoas.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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10.Caderno Entendendo sua Cultura, adquirido em https://publishing.energyinst.org/heartsandminds/toolkit/UYC

 

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  1. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [internet]. 2018. Carta de conjuntura. Mercado de trabalho. NÚMERO 41 — 4 ˚ TRIMESTRE DE 2018. Maria Andreia Parente Lameiras. Sandro Sacchet de Carvalho. Carlos Henrique L. Corseuil. Lauro R. A. Ramos. [acesso em 2019 jul.30]. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34745&Itemid=3

 

[1] Tradução dos autores.

 

Este artigo foi publicado originalmente na Revista Proteção ed. 361 ano 2022.

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