USO DE FOTOS DE ACIDENTES COMO PRINCIPAL CAMINHO PARA A CONSCIENTIZAÇÃO: SERÁ QUE FUNCIONA?
Autor(a):
Juliana Bley
Publicação:
Artigo publicado na revista CIPA – Março de 2008, nº 340, pp. 70-72.
“Nossa, doutora, todos os dias os chefes chamam a agente para ir no auditório ouvir falar de quem se acidentou e ver as fotos dos machucados, é tão ruim, chega a dar uma depressão na gente”. Este depoimento foi ouvido de uma operária durante um grupo de discussão sobre segurança numa das unidades de uma grande empresa brasileira. É uma fala simples, mas que nos provoca uma reflexão.
Estamos no real caminho da conscientização quando investimos um tempo enorme em produzir filminhos, slides e cartazes contendo cenas de pessoas mutiladas, queimadas, esmagadas durante a realização de suas atividades para expor aos nossos colaboradores?
Há uns anos atrás fui convidada para assistir a uma palestra sobre “comportamento seguro” numa indústria. Nunca esqueci dos 60 minutos de exemplos negativos (tudo o que a pessoa NÃO deve fazer para ter segurança) juntamente com muito sangue, pessoas queimadas e esmagadas. Além da estratégia didática de “impacto” e o nome sugestivo da palestra, o que mais me chamou a atenção foi a forma como duas operárias deixaram o grande auditório durante a palestra: correndo e com a mão à boca, num claro gesto de desconforto gástrico. Estes episódios que foram quase diários durante estes anos de trabalho junto às indústrias constantemente me colocam em questionamento quanto aos seus resultados. Isso funciona? Tenho minhas dúvidas…
O estudo aprofundado do comportamento seguro nos explica que para que ele seja adotado por uma pessoa é necessário garantir que ela aprendeu como fazê-lo. Neste caso, que ela aprendeu como identificar os perigos e controlar os riscos de uma atividade no presente de forma a reduzir a probabilidade de ocorrências indesejadas no futuro, para si e para os outros. Isto é uma definição de comportamento seguro. Para que uma pessoa aprenda a agir desta forma, será necessário que ela seja submetida a um esquema educativo consistentes, com recursos de diferentes tipos, já que se trata de uma aprendizagem bastante complexa para qualquer pessoa, independente de escolaridade, classe social e idade.
Métodos didáticos como: contato com procedimentos de segurança, informações sobre perigos e riscos da atividade, prática orientada para treino de habilidades motoras, estudo de operações bem sucedidas e mal sucedidas (acidentais) do equipamento a ser usado e suas conseqüências; são exemplos de recursos educativos que podem compor um esquema de aprendizagem de comportamentos seguros. Se utilizado de forma correta, todo este conjunto garantirá à empresa que aquele colaborador foi treinado da forma mais efetiva, que ele conseguirá utilizar as práticas seguras de trabalho e que o recurso do treinamento de segurança foi bem empregado.
O que acontecerá se substituirmos toda esta cadeia de aprendizagem por uma palestra de duas horas usando casos reais (fotos e filme) de pessoas acidentadas em diferentes situações, com diferentes equipamentos e reunir na platéia um conjunto de soldadores, eletricistas, ajudantes, pessoal de limpeza e operadores de linha de produção?
Além do problema da generalização dos exemplos devido ao fato de contarmos com uma platéia mista, o que fará com que todos saiam sentindo-se bem pouco representados em suas realidades de trabalho, ainda temos o problema do efeito das imagens. À luz da psicologia é possível dizer que quando um organismo é exposto a uma situação aversiva, sua tendência é tentar afastar-se dela tão rápido quanto for possível. Nossa memória de curto prazo nos auxilia neste processo, “deletando” o que não serve imediatamente e “arquivando” somente o que nos é interessante.
Afastar-se do desconforto, portanto, é uma ação que vem acompanhada de uma grande sensação de alívio. No nosso caso, afastar da mente a lembrança de uma imagem horrível nos gera alívio e retorno a uma sensação interna confortável.
Quando este mecanismo não funciona bem, podemos permanecer por um tempo convivendo com a memória de vivências indesejáveis. Até algumas patologias estão ligadas às imagens negativas recorrentes em nossa mente, como é o caso do estresse pós traumático, no qual a pessoa vítima de acidente não consegue tirar da memória as cenas vividas, o que traz imenso desconforto, impedindo seu retorno a uma ‘vida normal’ após o ocorrido.
Para verificar como isto funciona basta experimentar questionamentos simples. Responda as perguntas abaixo:
– Você lembra com facilidade das fotos e situações mais chocantes que teve contato no último ano?
– Elas ficaram vivas em sua memória todos os dias? Se sim, que conseqüência elas causaram para seu sono e para sua capacidade de conviver com aqueles perigos?
– Tais imagens fizeram você agir com mais cautela? Por quanto tempo? Duas horas? Um mês? Mais?
Não sei quais foram as respostas do leitor, mas a maior parte das pessoas para as quais já fiz estas perguntas durante estes anos responderam que precisam fazer esforço para lembrar das cenas terríveis de acidentes que já viram porque estavam “esquecidas” há tempo ou soterradas no meio das outras informações do cotidiano. Para as pessoas que ficaram com as memórias presentes por muito tempo, esta experiência apresentou-se como desconfortável, causadora de ansiedade, foi tema de alguns pesadelos, além de terem experimentado medo com relação ao objeto da cena (dirigir automóveis, pegar estrada, entrar no setor onde ocorreu um acidente, operar determinada máquina). Mas a campeã das respostas diz respeito à terceira pergunta: “nossa, depois de meia hora já tinha esquecido o carro retorcido que a polícia botou na beira da estrada e já estava correndo de novo”.
Considerando que o público que participou desta enquete informal era composto por gerentes de indústrias, profissionais de manutenção, motoristas de carga, operadores de equipamentos pesados, pessoal de construção civil que compõem o público-alvo de grande parte das ações de segurança do trabalho, pode-se considerar que a crença incontestável no uso de fotos de acidentes para educação é, no mínimo, uma aposta arriscada.
Por fim, examinando todos os aspectos como eficácia e durabilidade dos efeitos, riscos psicossociais associados (impacto negativo no clima do grupo e na motivação do trabalhador), empobrecimento do potencial educativo das ações (palestras e treinamentos) é possível concluir que o uso de fotos de acidente como o ÚNICO recurso educativo para prevenção de acidentes tem poucas chances de funcionar.
Mas isso significa que não devemos mostrar mais fotos? Não é isso. Não vamos radicalizar! Precisamos é mudar o foco e a ordem de importância dos estímulos que oferecemos aos nossos aprendizes.
O nosso desafio como prevencionistas é aperfeiçoar cada vez mais nossas práticas didáticas (hoje defasadas e pouco consistentes), aprofundar nossos estudos sobre o que realmente é comportamento humano e como conscientizar as pessoas (fugir do senso comum e das fórmulas velhas) e garantir que nosso público receba de nós muito mais do que as imagens dos fracassos da segurança.
Que os nossos trabalhadores possam conhecer a forma segura de realizar seu trabalho, que eles acreditem verdadeiramente que ser cuidadoso é a melhor atitude para enfrentar os perigos da vida e que, mais do que tudo, eles possam encontrar nas nossas palavras e orientações as melhores razões para continuarem vivos e saudáveis.