Vamos falar de psicologia aplicada a segurança do trabalho?

 

Maria Cristina de Cristo

Ana Carolina Reis

 

Pense na psicologia aplicada as organizações. Quais atividades você diria que o psicólogo estaria desenvolvendo?

Podemos supor que você associou o psicólogo às áreas de recursos humanos, e que estaria desenvolvendo atividades com recrutamento e seleção, testes e avaliações, além de treinamento e desenvolvimento de pessoas. 

São raras as conexões que se fazem com a qualidade de vida no trabalho e, em especial, com a segurança dentro do trabalho. Pensando nisso, falaremos justamente sobre essa atividade pouco explorada: a atuação do psicólogo em saúde e segurança do trabalho. 

Com esse relato de experiência, nosso objetivo é ampliar os horizontes de diversos públicos, como os estudantes de psicologia, psicólogos e demais profissionais. A todos os públicos, e em especial aos estudantes de psicologia, tentaremos levar um pouco de perspectivas práticas, sem academicismos e excessivas referências, mas sempre embasadas academicamente.

Falaremos a partir do ponto de vista de nossa trajetória. Somos psicólogas, uma mestre em psicologia e outra em educação, com especialização em áreas correlatas e trabalhamos com consultoria em atuação direta com a saúde e segurança do trabalho. A partir de nossas vivências nas grandes empresas brasileiras e multinacionais, e partir de nossa trajetória acadêmica, percebemos o pouco acesso dos estudantes e profissionais à essa área de atuação.

Acreditamos que, ao compartilhar um recorte das nossas experiências, podemos contribuir para que a nova geração de profissionais visualize a Segurança no Trabalho como um caminho possível, dentre tantos outros no âmbito da Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT). Nossa missão é tornar mais visível este frutífero campo de atuação que nos encontramos atualmente, possibilitando que estudantes e profissionais compreendam a importância e a rotina do psicólogo na promoção da saúde e segurança no trabalho.

 

A psicologia aplicada à segurança do trabalho

 

A entrada do psicólogo nas áreas de saúde e segurança coincide com a trajetória de evolução do mundo do trabalho, que são acompanhadas pela criação de leis trabalhistas e Normas Regulamentadoras(NR).  O mundo do trabalho foi ficando cada vez mais complexo e necessitando de conhecimentos complementares ao de outras áreas já tradicionais, como a administração e a engenharia, para suportar o crescimento, a internacionalização e a modernização das empresas.

O tempo mostrou que somente os avanços tecnológicos e sistemas complexos não suprem totalmente as demandas que anseiam uma evolução perene. É necessário atentarmos às necessidades emocionais, sociais e psicológicas no contexto do ambiente de trabalho e da segurança organizacional. A chamada “3ª onda da segurança”, que teve início nos anos 2000, destaca a importância de abordagens mais humanas e psicologicamente informadas na gestão da segurança. Isso reconhece que não se trata apenas de implementar tecnologias ou padrões, mas também é necessário compreender e responder às complexidades das interações humanas no ambiente de trabalho.

Nessa conjuntura, a psicologia desempenha um papel fundamental, ajudando a entender as dinâmicas do grupo e organizacionais, as conciliações, as motivações, as relações interpessoais e outros fatores psicológicos que influenciam o comportamento no trabalho. A escuta ativa, a empatia e a compreensão das necessidades individuais e coletivas são ferramentas valiosas para promover um ambiente de trabalho saudável e seguro. Portanto, a integração de abordagens humanas, como a psicologia, juntamente com o desenvolvimento tecnológico, se torna primordial para criar soluções abrangentes e eficazes em diversos contextos, incluindo a segurança do trabalho.

 

Possibilidades de atuação do psicólogo

 

Dentro de uma empresa o psicólogo pode atuar ligado diretamente a área de segurança local ou corporativa, assim como em uma posição equivalente a um Business Partner de RH, que o mercado tem chamado de analista comportamental ou analista de cultura. Observamos que esses cargos têm crescido de forma significativa nos últimos cinco anos em empresas de diversos segmentos, justamente com o desenvolvimento de uma mentalidade que coloca o volume de produção, segurança e a qualidade como elementos que devem ser equilibrados. 

Nessa posição, espera-se, com base na nossa experiencia como consultoras, que o profissional esteja atento tanto aos processos quanto às pessoas. Desse modo, dentre as principais atribuições do psicólogo estão:

  • Desenvolver diagnósticos de clima e cultura de segurança;
  • Desenvolver diagnóstico de fatores de risco e riscos psicossociais;
  • Desenvolver planos de ação e de intervenções que apoiem as áreas na eliminação ou mitigação dos riscos;
  • Desenvolver planos de transformação da cultura de segurança;
  • Desenvolver trilhas de aprendizagem e aplicar treinamentos à líderes e áreas operacionais, portando-se de critérios andragógicos e participativos;
  • Fomentar um canal mais aberto para que os trabalhadores expressem suas preocupações, sugestões e necessidades em torno das questões de saúde e segurança;
  • Realizar pesquisas e estudos empíricos que explorem as experiências reais dos trabalhadores, de forma a adaptar o trabalho às necessidades humanas;
  • Enriquecer processos de investigação de acidentes, incorporando métodos e teorias psicológicas para entender melhor como o comportamento humano e as dinâmicas interpessoais podem influenciar a segurança;
  • Apoiar a gestão de crises, lançando mão de técnicas e conceitos em prol da resiliência e o bem-estar mental dos indivíduos afetados;
  • Dentre muitos outros.

 

Como você já observou, existe uma variedade de funções desempenhadas pelo psicólogo no campo da Segurança do Trabalho. Essa atuação não somente influencia diretamente a segurança física de pessoas e processos organizacionais, como também estão indiretamente ligados à saúde mental. A cultura de segurança, com suas nuances, reflete de maneira direta nas condições sociais e materiais dos indivíduos, sendo uma força motriz que pode moldar significativamente os movimentos que dão vazão ao processo de produção de saúde. 

Cabe ressaltar que nossa capacidade de sermos saudáveis está intimamente ligada ao ambiente em que vivemos e interagimos. Nesse contexto, a atuação do psicólogo sobre o desenvolvimento da saúde mental é um vasto campo a ser explorado, sobretudo nos tempos disruptivos que vivemos. O trabalho desempenha um papel fundamental na vida humana, e, portanto, é crucial cuidarmos dele com dedicação e atenção. Ao zelarmos pelo trabalho, estamos ambicionando o trabalho digno e saudável e, de maneira simultânea, cuidamos das pessoas e de seus projetos de vida. 

Nesse contexto, a atuação de nós, psicólogos, se torna fundamental, permitindo uma abordagem mais aprofundada das lacunas existentes (relação trabalho – vida pessoal), agindo como facilitadores na identificação e superação de obstáculos ao bem-viver no ambiente profissional. Pois, sim, devemos buscar incessantemente o bem-viver no trabalho, haja vista sua centralidade na vida humana.

Quando nos dirigimos à área de operação, durante uma observação e abordagem, por exemplo, compreendemos que, em um segundo momento, nos tornamos portadoras de múltiplas vozes. Essas vozes carregam consigo responsabilidades, perspectivas e experiências vividas que merecem ser ouvidas e consideradas na implementação dos processos organizacionais de segurança. Ao compreender e endereçar as dinâmicas psicossociais, o psicólogo contribui para a promoção de uma cultura organizacional saudável, onde tanto a segurança física quanto a mental são prioridades indissociáveis para a evolução do negócio. 

Dando continuidade, outra possibilidade de atuação do psicólogo está diretamente ligada ao atendimento de NRs específicas. Algumas NRs citam a necessidade dos executantes das atividades passaram por testes e avaliações, mas ainda é uma área nebulosa de atuação e interface como outros profissionais como, o médico do trabalho, o ergonomista e o técnico de segurança. Vamos exemplificar:

A NR-17, que aborda a ergonomia no ambiente de trabalho. Nós, psicólogas (os), em parceria com a equipe de segurança e saúde ocupacional, poderíamos atuar na criação de avaliações para entender como as condições de trabalho afetam emocionalmente os colaboradores, identificando aspectos que impactam o bem-estar, assim como o desempenho do pessoal. A partir da utilização de questionários, entrevistas e até mesmo grupos focais, por exemplo, poderíamos analisar fatores como o estresse e a carga mental, buscando melhorar a qualidade do ambiente laboral de forma condizente com as necessidades locais.

Na NR-33, sobre segurança e saúde nos trabalhos em espaços confinados, poderíamos atuar na elaboração de ferramentas para entender como as pessoas lidam com situações de confinamento, como gerenciam o estresse em ambientes restritos e como trabalham em equipe nessas situações críticas.

Já na NR-35, que trata do trabalho em altura, poderíamos avaliar o perfil psicológico para entender aspectos como: a disposição para se colocar em zonas de riscos, a habilidade de se concentrar em atividades em altura, autoestima, forma de gerenciamento do medo etc. Atrelado a isso, seria possível desenvolver ações educativas andragógicas para fortalecer a consistência técnica, emocional e o desempenho desses trabalhadores.

O que percebemos no dia a dia é que existe um movimento persistente de reconhecimento da importância da nomeação e manejo dos riscos psicossociais no trabalho, mas, é importante mencionar que ainda existe um longo caminho para ser percorrido, com o intuito de garantir uma abordagem abrangente e efetiva na gestão desses aspectos. Isso também perpassa pela necessidade de formação continuada, inserção das temáticas estratégicas nas grades curriculares e da produção de conhecimento, bem como a sua disseminação. 

 

Viu só como a nossa atuação acaba sendo abrangente? Pois bem!  Com base em nossas experiências de graduação, notamos que essas oportunidades práticas costumavam ser pouco disseminadas, seguindo na contramão do florescimento desse campo de atuação. Muitas pessoas que trabalham nessa área só descobrem a psicologia aplicada à Segurança no Trabalho após passarem pelo processo formativo, quase por acaso, na base da “sorte”. Podemos inferir que essa percepção também se repete com as gerações atuais, conforme constatamos recentemente ao interagir com estudantes de graduação em Psicologia em uma universidade pública. Durante uma entrevista para um trabalho acadêmico, percebemos certo espanto deles pela falta de conhecimento sobre o tema.

Em suma, as breves observações discorridas no nosso texto evidenciam a importância e a necessidade de ampliar a disseminação das oportunidades e práticas profissionais na área. Observamos como urgente que os espaços de conhecimento falem mais sobre tais linhas de atuação. A inclusão dessas temáticas nos currículos acadêmicos, realização de workshops específicos e parcerias/convites com profissionais atuantes na área são estratégias fundamentais para proporcionar aos estudantes um conhecimento mais abrangente e alinhado com as demandas contemporâneas, não somente de mercado, mas principalmente no tocante a responsabilidade social.

 

Para saber mais, você pode acessar:

https://revistas.editoraenterprising.net/index.php/rpcj/article/view/336/506

https://site.cfp.org.br/resolucao-cfp-02-2022-regulamenta-avaliacao-psicossocial-no-trabalho/

https://periodicos.fgv.br/abpa/article/view/17043

https://ojs.unesp.br/index.php/rlaborativa/article/view/3803

https://old.sbpot.org.br/publicacoes/artigos/a-falta-do-psicologo-da-saude-ocupacional-na-equipe-de-seguranca-do-trabalho/

1 Psicóloga (UFRN), Mestre em Psicologia Social (UFMG), Pós-graduada em Neuropsicologia (FUMEC) e Consultora na área da segurança comportamental 

Contato: mcristinadecristo@gmail.com

LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/maria-cristina-vieira-de-cristo-e-silva-68420915b/

2 Psicóloga (UFF), Mestre em Educação (UFSCar) e Consultora na área da segurança comportamental 

3 As Normas Regulamentadoras, ou NRs, são disposições, requisitos e procedimentos técnicos que os empregadores devem seguir para garantir a segurança e saúde dos funcionários no ambiente de trabalho. Criadas em 1978 para dar suporte à Lei nº 6.541, as NRs devem ser adotadas por todas as empresas que pertencem ao regime CLT.

Contato: psi.anareis@gmail.com

LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/psicologa-anareis/

4 Definição do Health and Safety Commission (HSC) da Advisory Committee on the Safety of Nuclear Installations (ACSNI):

A Cultura de Segurança de uma organização é o produto dos valores, atitudes, percepção, competências e padrão de comportamento de indivíduos e grupos que determinam o comprometimento, o estilo e a proficiência do gerenciamento da segurança do trabalho da organização.

5  Andragogia  é  a  ciência  que  estuda  como  os  adultos  aprendem, Bellan(2005).

6 Momento de interação com funcionários das áreas operacionais das empresas, entendido como uma ferramenta de segurança, que busca conhecer e trocar experiências sobre e saúde e segurança do trabalho.

7 Texto escrito em dezembro de 2023.

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